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Em um país onde muitos vendem o almoço para comprar a janta, quarentena é luxo

Quando falamos de prevenção contra a transmissão do novo coronavírus, não resta dúvida de que a quarentena é uma das medidas não farmacológicas de grande importância, mas de nada adianta saturar a sociedade de informações a esse respeito se o contexto de vida maioria das pessoas não condiz com essa realidade.

Estamos, sim, diante de um grande dilema, mas não porque divergimos sobre a eficácia da quarentena, ou se concordamos com o desdém de alguns em querer fazer parecer que o coronavírus não passa de uma “gripezinha”. Mas sim porque, em termos práticos, a absoluta maioria do povo brasileiro não tem ao menos estrutura física para se isolar.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 11,4 milhões de pessoas vivendo em favelas. Fora desse contexto, muitos moram em bairros que embora não estejam localizados nas regiões mais carentes, também possuem pouca estrutura de saneamento. São casas, sobrados e apartamentos minúsculos dividindo paredes entre famílias diversas.

Sem contar a estrutura de moradia, temos a dos transportes públicos, onde ônibus e metrôs lotados saem diariamente das suas estações carregando milhões de pessoas todos os dias pelas ruas do país. Essa dura realidade difere em níveis abismais da maioria dos contextos em países mais desenvolvidos, onde a condição de vida da população, por si só, favorece a prevenção através do isolamento.

Quarentena é luxo

Neste exato momento, enquanto o mundo teme o contágio com o coronavírus, não é exagero imaginar que em 99% das comunidades carentes do país milhões de pessoas devem estar fora de suas casas, na calçada, no banco da praça ou no terreno batido com amigos jogando uma partida de futebol.

Quem julga, de imediato, que tal comportamento seria um ato de irresponsabilidade, julga irresponsavelmente uma realidade que certamente desconhece. Não se trata de imprudência na maioria dos casos, mas de falta de opção.

Estamos falando de pessoas que moram em casas improvisadas, algumas ditas como “barracos”, outras em melhores condições, mas pequenas, sem área de lazer, quintal ou terraço. Incluímos nesse bojo os apartamentos populares de 40, 45 e 50 metros quadrados, onde não há em seus condomínios qualquer atrativo, nem mesmo uma varanda onde se possa respirar fora das quatro paredes.

Falar em quarentena quando se vive em um condomínio-club é distorcer a realidade da maioria da população. O mesmo vale para quem possui a dispensa cheia e tem reservas ou ativos financeiros lhes rendendo, garantindo ali o sustendo e a quitação das dívidas no final do mês. 

A quarentena é uma necessidade? Sim, certamente, mas também é um luxo em nosso contexto. Diante de tantas Marias e Josés que diariamente precisam vender o almoço para comprar a janta, se isolar em uma residência de um, dois ou três cômodos com bocas para sustentar não é diversão, nem aventura, mas sofrimento e cenário de desespero.

O que fazer, afinal?

O desafio de promover a quarentena em um país continental como o Brasil, diverso economicamente e socialmente, é saber julgar com equilíbrio cada realidade, levando em consideração a necessidade de cada população, a fim de que não se cometam abusos no sentido de privar sem necessidade, ou liberar por irresponsabilidade.

Não é um trabalho fácil, mas se não for esse o caminho e, por causa disso, toda a população for pesada na mesma balança, é provável que possamos conter o colapso do sistema de saúde, mas também é provável que tenhamos uma crise humanitária causada pelo desemprego, pobreza e violência jamais vista na história desse país.

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