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A morte das utopias e o reinado da solidão compartilhada

Diferente do que podíamos imaginar com o advento da tecnologia, especialmente com os novos recursos de comunicação que aparentemente deveriam aproximar mais as pessoas, a humanidade vive um período de crise onde a principal característica é a morte das utopias (ideais).

Também vivenciamos um período generalizado de depressão, ansiedade e solidão. Talvez você esteja se vendo agora nesse contexto e tomando consciência da sua própria condição de “isolamento”, apesar das muitas pessoas que você interage diariamente, física ou virtualmente. Nosso objetivo nesse texto será refletir um pouco as razões desse fenômeno.

Uma breve análise de contexto

Os valores fundamentais da sociedade praticamente não sofreram alterações até a década de 60. Podemos dizer com tranquilidade, por exemplo, que o pensamento dos anos 1850 eram os mesmos dos anos 1950. Em 100 anos, o estilo de vida e visão de mundo da sociedade pouco mudou. Isso porque durante esse período havia uma estabilidade cultural sustentada por princípios políticos, religiosos e filosóficos.

Esse conjunto de elementos, portanto, bem delineados, era o que mantinha as diversas utopias e estilo de vida até então. Todavia, já nos anos 60, especialmente década de 70 até os anos 1990, o mundo passou por inúmeras “revoluções” de pensamento, parte deles consequência da depressão mundial provocada pelas duas grandes guerras (1914-1918 / 1939-1945), bem como os muitos conflitos militares regionais na África, Oriente Médio, Ásia e Américas.

O avanço industrial e tecnológico, bem como a disseminação da filosofia humanista segundo os ideais do iluminismo e da psicologia que muitos acreditavam poder banir a “ignorância” (supostamente das religiões, principalmente) e a miséria do mundo, não produziram os resultados esperados.

A “evolução” se deu apenas no âmbito material, mas não no humano. A tecnologia serviu para o aperfeiçoamento de armas cada vez mais potentes, dentre elas as bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, assim como para a exploração dos recursos naturais do planeta de um modo quase irracional.

Tanto a filosofia como a psicologia/psicanálise se diluíram num mar de postulados que não conseguiram orientar a visão humana para o humano, senão apenas em livros e métodos insuficientes para dar conta de tantos dilemas.

Como resposta a esses acontecimentos, movimentos sociais como o hippie surgiram para pedir uma “sociedade alternativa”, enquanto outros, como o feminista e o homossexual, lutavam por mais liberdade e igualdade. Paralelo a esses, às religiões ganharam força, mas agora com inúmeras variações e dissoluções doutrinárias. O misticismo cresceu como nunca antes. A humanidade que antes depositava muita expectativa na “luz da razão”, buscou mais uma vez encontrar nas diferentes formas de crenças a esperança para suas angústias.

A partir dos anos 90, tivemos a solidificação em massa na cultura das revoluções de pensamento iniciadas em 60 e 70, enquanto dos anos 2000 em diante começamos a colher as consequências dessas transformações.

Os adultos hoje que vivenciaram quando jovens, influenciando e sendo influenciados, as transformações nas décadas “revolucionárias” (os que tem hoje entre 50 e 60 anos), foram os responsáveis por consolidar isso nos anos 90, positivo ou negativamente. São os filhos deles, nascidos entre 80 e 90, que produziram a geração atual de jovens nascidos a partir de 2000.

O que temos então são três gerações que surgiram num contexto onde transformações radicais ocorreram na sociedade, de ordem política (econômica/ambiental/geográfica), religiosa (moral) e filosófica (ética/utópica). Mas afinal, o que isso tem a ver com a morte das utopias e o reinado da solidão compartilhada, o estresse, depressão e ansiedade atuais? TUDO!

Uma geração sem identidade

No meio de tantas transformações, o delineamento dos conceitos, ideias, ou seja… das utopias, foram se tornando cada vez mais confusos e frágeis. Aos poucos a humanidade foi resumindo seus dilemas a uma luta por interesses econômicos, onde as indústrias ditaram o “valor” a ser seguido. Falamos aqui de globalização.

Nesse processo, o conceito de “humano” foi se moldando ao tipo de “coisa” que pudesse atender o que viria substituir radicalmente, e de uma vez por todas, às velhas utopias humanas, são elas o CONSUMO, PODER e o PRAZER.

Identidade cultural é a identidade dos sujeitos que compõem essa cultura. Alterar ou destruir uma cultura é, portanto, afetar ou destruir o próprio sujeito. A cultura que construímos como consequência da evolução industrial e tecnológica não preservou as identidades dos indivíduos, porque isso significaria preservar suas próprias identidades, maneira de enxergar e viver no mundo.

Todavia, a necessidade de consumo para atender as demandas de produção fez com que através da globalização pudéssemos construir um novo sujeito, com desejos e compreensão completamente DEFINIDOS pelo que hoje constitui sua nova cultura: consumo, poder e prazer!

Para o teórico cultural e autor Stuart Hall, os recursos da pós-modernidade fizeram da globalização um processo de eliminação das identidades culturais. O que antes fora um acontecimento econômico, atualmente é inevitavelmente comportamental.

Uma vez que economia diz respeito ao modo como o ser humano lida com o dinheiro, falamos então dos desejos, precisando intervir no sujeito desejante para que sua conduta se alinhe ao curso do que já não se chama globalização, mas sim “globalitarismo”, como afirma o geógrafo Milton Santos na obra “Globalitarismo: a realidade por trás da Globalização”.

Como o sujeito tem a sua identidade depositada no valor do consumo, poder e prazer, ela (a identidade) oscila conforme estes elementos oscilam.

O que hoje está na moda e é “necessário” ter, para se enquadrar? O que hoje significa prazer e poder? Amanhã esses significados serão outros. Num espaço muito pequeno de tempo a demanda da “cultura global” se modifica para que possa fazer girar as motivações humanas, todas entorno do consumo, poder e prazer. Com elas giram também as nossas identidades.

Na prática, portanto, não temos o tempo necessário para firmação de uma identidade, e se não temos identidade, como teremos utopias?

O que antes delineava a conduta da população pela existência de ideais políticos, filosóficos e religiosos, atualmente está dissolvido em uma espécie de “utilitarismo funcional” imediatista. Uma das evidências mais objetivas disso está na impressão de que o tempo está passando cada vez mais rápido. Por isso dizemos frequentemente não ter tempo para lidar ou pensar certas coisas que exigem de nós mais atenção (se você é um dos poucos que conseguiu ler esse texto até aqui, parabéns!).

Na verdade, o tempo continua o mesmo, enquanto o que passa cada vez mais rápido são os nossos frágeis conceitos (e com eles nossas identidades), devido à rápida modificação da cultura global.

Nós vivemos mentalmente no piloto automático porque temos uma soma absurda de informações e acontecimentos diários para processar. Esse padrão de comportamento, que oscila a cada nova mudança, é o que faz parecer frustrante e desnecessário a construção de ideais, uma vez que a impressão de que nos falta tempo impede de valorizar questões mais complexas da vida humana.

Por essa razão o utilitarismo funcional se torna algo muito atraente, porque acreditamos que desde que algo funcione, quanto mais objetivo, prático e simples for, estaremos economizando tempo! Já deu para entender o que pode explicar a ansiedade, estresse, solidão e depressão atuais? Basta transferir esse mesmo padrão de relação com os objetos para às relações humanas.

Ansiedade, depressão e solidão

No mundo atual, todos os humanos apresentam em algum grau ansiedade ou depressão. O que nos diferencia é o nível de comprometimento, se muito ou pouco. Essa variação, quando muito acentuada, passando a comprometer a vida do sujeito, é o que determina se precisa ser encarada como uma doença ou não.

Isso acontece porque se vivemos numa cultura global utilitária. Agimos querendo atender às exigências do imediatismo provocado por ela. Essa é a razão do consumismo, poder e prazer serem os fatores determinantes dessa nova cultura, porque são igualmente imediatos.

Você consome porque pensa com isso obter poder, e esse poder aliado ao consumo é o que lhe dá a sensação de prazer. Existe forma mais rápida de conseguir essas coisas do que pagando por elas? Todavia, os elementos mais essenciais da vida humana NÃO PODEM SER COMPRADOS, mas sim conquistados, e eles são frutos dos RELACIONAMENTOS que temos com nós mesmos e com o próximo. Nesse quesito encontramos muito do que pode explicar o alto índice da depressão e solidão.

Nessa cultura global utilitária desaprendemos a desenvolver relacionamentos saudáveis. Passamos a nos enxergar artificialmente como pessoas capazes ou não de atender as demandas do imediatismo. Se por um lado desejamos relacionamentos confiáveis, amizades, paixão, amor e respeito, por outro não estamos dispostos a pagar o preço de construir tais relações, pois afinal, não temos tempo! Sendo assim, como pensamos suprir essa necessidade? Com relacionamentos virtuais!

A impressão de ser popular e aceito pelo número de amigos, curtidas, visualizações e, principalmente, de poder manipular a sua imagem, escondendo o que podem ser defeitos seus para os outros, a fim de que todos lhe conheçam apenas pelo que VOCÊ é capaz de CONTROLAR, é outra grande impressão de vantagem.

Pessoalmente não temos tempo para lidar com o descontrole, entende? E a vida real possibilita isso (o descontrole), também! Ou seja, as frustrações do outro, suas angustias e peculiaridades, só podemos conhecer, de fato, no mudo real, o qual evitamos porque “não temos tempo”.

Não temos tempo para ouvir os pensamentos do outro, porque podem não ser interessantes; não temos tempo para perder tempo passando tempo na presença de quem possivelmente irá nos desagradar, entende? Assim, fica evidente o quanto as relações pessoais da atualidade são frágeis e momentâneas, porque estão a sua maioria baseadas no imediatismo do consumo, poder e prazer… em função do tempo!

Você tem 500 amigos virtuais, mas quantos na vida real? Os poucos que tem (se tiver), são apenas úteis, e ainda assim quando estamos na presença desses, preferimos permanecer conectados no mundo virtual, passando a vivenciar justamente uma solidão compartilhada. Presentes fisicamente, mas distantes na atenção.

A solidão se instala quando constatamos a realidade da nossa condição afetiva. Apesar de estarmos condicionados ao imediatismo da cultura global utilitária, ainda que possamos obter o poder para consumir e sentir prazeres imediatos, ou mesmo preencher 100% do nosso tempo com atividades aparentemente necessárias (trabalho, estudos, diversão, etc), no campo sensível dos sentimentos, onde reside a necessidade de compreensão, valorização, amor, motivação, respeito, mutualidade… estamos vazios!

Ao possuir consciência dessa falta, o sujeito torna-se ansioso ou depressivo. O ansioso tentará suprir essa falta perseguindo os ideais de consumo, poder e prazer, é o que faz a maioria de nós. Poderá se tornar alguém obcecado por sucesso profissional (poder), exibição social (consumo) ou hedonismo (prazer). Todavia, essas três características andam juntas, sendo comum a ênfase de todas elas.

A depressão, por sua vez, pode ser a consequência de dois resultados possíveis: 01 – a frustração por não alcançar as condições ideais para ser enquadrado na cultura vigente de consumo, poder e prazer; 02 – a tomada de consciência quando todas essas condições são alcançadas, mas a realidade da “falta” se apresenta maior do que a realização cultural supostamente alcançada.

É quando o indivíduo se depara com o real e percebe que os valores sob os quais alicerçou a sua vida são frágeis e muito oscilantes. Este é o momento em que na condição de “vacuidade” a identidade lhe daria suporte, servindo de amparo contra as variações do meio social. Todavia, qual é a identidade que este indivíduo possui? Ele próprio não se reconhece.

 O que fazer para mudar?

É possível mudar a sua própria maneira de se relacionar e pensar a vida. Algumas revoluções de pensamento, iniciadas nas décadas anteriores, de fato, representaram bons avanços, mas nem todas assumiram compromisso com a boa Ética e moral humanas. Muitas foram apenas revoluções em função de uma inquietude existencial, como é ainda hoje, sem qualquer análise crítica das consequências possíveis para as futuras gerações.

A ênfase demasiada no consumo como ideal de poder e prazer, bem como o relativismo radical da moral, da natureza humana e a dissolução do sentimento religioso em qualquer coisa que expresse algum tipo de crença, sem a valorização dos ensinos milenares da antiguidade, por exemplo, são aspectos importantes a serem repensados.

Da forma mais simples possível, essa mudança ocorre na escolha dos seus relacionamentos. Não se resumir ao mundo virtual, mas pelo contrário, utilizá-lo apenas como uma ferramenta de acesso ao real, valorizando a presença e os dilemas da vida onde se pode tocar, cheirar, abraçar, sorrir e chorar.

Contribuir para que os velhos amigos se reúnam em praças, bares, igrejas ou calçadas. Famílias vivam como famílias, compartilhando situações únicas típicas da família. Que pais e filhos valorizem a partilha de uma mesa na hora da refeição e as profissões sejam para o aperfeiçoamento de talentos, “vocação”, e não por interesses econômicos, apenas.

É desse conjunto de VIVÊNCIAS que nascem as utopias. Ideais que quando compartilhados com pessoas interessadas em ouvir, a solidão e seus sintomas como ansiedade e depressão deixam de existir.

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